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Recentemente, temos testemunhado cenas assustadoras de violência, fundamentalismo, intolerância, destruição, as atrocidades de “novos muros” e tantas outras imagens que nos fazem questionar da onde vem, novamente, tal grau e amplitude de conflitos. Muitos pensadores já se perguntavam sobre a escalada mundial de violência que se desdobrou desde o século passado, com as “matanças” de duas Grandes Guerras, os horrores gerados pelos sistemas fascistas e, de outras formas, pela Guerra Fria. Certos filósofos e pensadores políticos refletiram acerca de por que estas atrocidades ocorreram justamente depois do chamado “Iluminismo da Razão”, ou o “Esclarecimento”, já que o homem caminhou tanto com o pensamento e a ciência depois de ter saído das trevas da Idade Média… Persiste a pergunta: como vivemos ainda esta espiral de violência e intolerância, mesmo em uma era de educação abrangente e de um domínio da razão como nunca antes houve? 

A cientista política Hannah Arendt tem um belo trabalho sobre este tema. Alemã e judia, viveu entre 1906 e 1975. Morando nos EUA depois da Segunda Guerra, voltou à Europa para testemunhar o julgamento de Eichmann, nos tribunais de Nuremberg, sobre o que escreveu artigos para a revista The New Yorker. O que espantou Hannah Arendt e que fez seus artigos gerarem fortes reações no mundo todo foi que não encontrou o arquétipo de um homem mal, com sentimento de culpa ou dilemas morais sobre o que teria feito, mas de um burocrata simplesmente fazendo “seu dever”, sua tarefa. Obedecia a superiores. Ele, como outros, cumpria ordens, fazia seu papel, atendia ao que era esperado. Assim, um homem acionaria a câmera de gás, outro conduziria um trem rumo a um campo de concentração, e um outro, ainda, fuzilaria civis, sem realmente questionar (moral e humanamente) o que estavam fazendo… Eram funcionários do sistema e atuavam “conforme”, irrefletidamente, como que anestesiados, talvez.

O quanto algo “um tanto assim” ainda é verdade mesmo em nossas vidas cotidianas? O quanto fazemos simplesmente a nossa parte, dentro do que nos é apresentado, frequentemente sem ponderar sobre a consequência maior? O filme em cartaz “Dois dias, uma noite” revela dilemas que se colocam no mundo empresarial: o argumento gira em torno da luta de uma mulher, industriaria francesa, para manter seu emprego, cuja perda representaria grande dificuldade para sua família e também a possibilidade de seus colegas de fábrica ganharem, por sua vez, um bônus de mil euros cada. Então: demite-se a colega e temos um bônus? Ou vota-se pela permanência, fraternalmente, e se abre mão de algo “a mais” para si próprio? O que é justo? Aceitável? Afinal, todos tem uso para algum dinheiro a mais… Mas a que custo?

Estes dilemas não estão presentes apenas nos filmes, claro. Em um trabalho que realizei em uma grande empresa de alimentos, a gerente de produtos chorou ao perceber que ela não oferecia para seus filhos, em casa, o produto “embutido” que promovia no mercado, para os filhos dos outros. Um bancário com quem fiz coaching  não se conformava com a oferta maciça de crédito que era feita de forma irresponsável por sua própria organização, sem qualquer ação paralela de educação financeira. Ele próprio tinha familiares que se endividaram demais. Há anos, tive uma importante crise de propósitos ao perceber que meu ofício de planejadora de estratégias de publicidade tinha como essência a sedução das consciências, através de apelos muitas vezes duvidosos, do ponto de vista moral, e frequentemente violentos, do ponto de vista psicológico.

Voltando ao trabalho de Arendt, ela buscou mostrar que a educação com base na capacidade de autorreflexão e de pensamento crítico é o aspecto mais fundamental para a verdadeira emancipação do homem e, podemos completar, para a possibilidade de paz no mundo. Mas ainda vemos nossas escolas e nossa sociedade educando jovens para se tornarem “bons” trabalhadores e consumidores que refletem o mínimo e caminham quase cegos no automatismo: repetindo, reproduzindo, respondendo a estímulos sem real ponderação e com pouca liberdade de consciência. Não é por acaso que tantos executivos vivem também nesta inércia. E o que dizer da crise de valores que fica escancarada na política, hoje?

Dentro de nosso campo da consultoria de desenvolvimento – originalmente chamado de Process Consulting, que toca os âmbitos cultural e social das organizações –, discutimos a necessidade de desenvolver o ser humano “integrado”, aquele que é crescentemente capaz de refletir e ponderar em liberdade, com a força de seu Eu.

Na visão da Antroposofia, na nossa Era da Consciência, o desafio central é deixarmos de agir como seres humanos “naturais”, que agem com base nos instintos básicos do animal que é parte de nós — ou ainda na tirania das paixões, simpatias e antipatias –, para nos desenvolvermos como seres que se colocam no mundo e nas relações de uma outra forma, mais livre e consciente. É isto que chamamos de seres humanos “integrados”. O ser humano “natural”, que não faz o seu processo de desenvolvimento, tem dificuldade de integrar as esferas do Pensar, Sentir e Querer através da ponderação e, portanto, não é realmente livre. Ser livre não é fazer o que se quer, mas agir a partir de um Eu Consciente, que escolhe. A liberdade aumenta à medida que aumenta a consciência, e não à medida que nos desconectamos das consequências de nossas ações. Ser livre e ser leviano está longe de ser a mesma coisa, em suma.

Como podemos atuar individualmente neste sentido? Como já sugerimos, entendemos que a resposta está na capacidade de ponderação, que alcançamos a partir do diálogo entre o Sentir e o Pensar antes de atuarmos. Pode parecer muito simples: tenho um estímulo externo, faço uma conceituação no Pensar e saio da ditadura da simpatia-antipatia no Sentir, desenvolvendo a empatia. Esta perspectiva pode ajudar a olhar as pessoas e as situações um pouco do alto,  numa perspectiva mais isenta, que nos libere para ponderar com liberdade. O simples fato de reconhecer o que é simpático ou antipático ajuda a fazer isto… Ou seja: não gosto de certa ideia por que não gosto daquela pessoa? Acredito mesmo em algo ou estou criando toda uma teoria para evitar ter que conviver com alguém ou ter que lidar com algo que me dá desprazer? Precisamos “chamar” um Eu que está mais acima deste mundo das paixões para nos ajudar a ponderar sobre o que vivemos e, assim, atuarmos com consciência… Mas consciência de que? Primeiro, de nós mesmos.

Quando, assim, fazendo o ponderar (pounding: medindo, equilibrando, balança em mãos!), vamos nos tornando mais capazes de tomar decisão com liberdade de consciência, maior tranquilidade, em fluxo e paz com a gente mesmo. A boa relação conosco mesmo ajuda nosso Eu a tornar-se mais realizado e confiante, e este Eu se “expande”… É como estarmos mais alertas,  mais “despertos” mesmo. E isto parece ser muito do que o estado das coisas no mundo está pedindo. Atuando com reflexão em cima de nossos pés, olhando para nós mesmos e para o todo, tomando decisões que fazem diferença não apenas para o indivíduo, mas que conecta com algo maior, coletivo, que o mundo quer e precisa.

Desenvolvermo-nos de forma integrada tem mesmo a ver com chamar o Eu para atuar como maestro do nosso caminho. Autores de nosso destino, de nossas escolhas, de nossas decisões. E, afinal, quem sabe um dia, de um mundo muito mais em PAZ.

 

Memorial aos Judeus Mortos da Europa (Memorial do Holocausto), Berlim. Foto: Paula Saboia, 2014.