Trimembração aplicada à gestão organizacional

Nós últimos doze anos eu me dediquei intensamente ao tema da economia à luz da antroposofia, trabalhando com indivíduos, famílias e organizações. Quanto mais eu me aprofundei neste tema, mais eu cheguei a ideia da trimembração do organismo social de Rudolf Steiner.

A trimembração está presente em nosso cotidiano muito mais do que às vezes imaginamos. O ser humano como individuo é trimembrado em sua estrutura e essência, sendo composto por corpo, alma e espirito. A nossa alma se expressa no mundo também de forma tríade ou trimembrada, através das faculdades do pensar, do sentir e do querer.

Rudolf Steiner ao contemplar e observar a humanidade como um todo, nos apresenta a trimembração do organismo social. Assim como a humanidade como um todo, o planeta, pode ser visto como um organismo social vivo e único, também uma família é um organismo social, um grupo, uma escola, uma empresa, um conglomerado de empresas, uma ONG, um país, ou seja, um organismo social é definido por um grupo de pessoas que trabalham juntos em prol de determinado objetivo.

Rudolf Steiner ao observar a vida social humana, diz que ela é composta por três diferentes e principais dimensões: a vida cultural / espiritual, a vida jurídica / politica e a vida econômica. Segundo ele, para que um organismo social possa funcionar e viver de forma saudável cada uma dessas três dimensões deve ser regida por um determinado princípio. Ele então remonta aos princípios universais da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade, e afirma que a vida cultural / espiritual deve ser regida pelo princípio da liberdade, a vida jurídica / política pelo princípio da igualdade e a vida econômica pelo princípio da fraternidade.

Agora, para começar, como podemos pensar na trimembração em nossa vida cotidiana, em nossa vida familiar, em nosso trabalho, em nossas relações, como isso se dá?

Fundamentalmente, a trimembração se dá e se expressa em todo e qualquer encontro humano. Afim de nos aprofundarmos neste ponto vamos primeiramente pensar na ideia da liberdade no campo cultural / espiritual. Neste âmbito tratamos essencialmente de como em um ambiente social podemos criar as condições necessárias para que um indivíduo possa desenvolver plenamente as suas capacidades e aplicá- las no mundo, na vida social. Muitas vezes ao pensarmos no âmbito cultural / espiritual temos a tendência de imaginarmos algo muito distante ou abstrato, mas em realidade ele tem a ver com o desenvolvimento das capacidades “espirituais” de cada indivíduo. Utilizo aqui a palavra espiritual de forma proposital e consciente. Hoje o mundo já reconhece a necessidade e importância do desenvolvimento de tais capacidades, que incluem a inteligência cognitiva (QI), a inteligência emocional e hoje a chamada inteligência espiritual. O próprio mundo corporativo, dentro da análise e desenvolvimento de competências trata das capacidades técnica-operacionais, sócio-comportamentais e hoje já se fala em capacidades essenciais ou espirituais.

Agora, se desejamos apoiar o desenvolvimento das capacidades individuais dentro dos contextos onde vivemos e atuamos será necessário inicialmente exercitar o respeito à individualidade do outro. Então chegamos na questão do encontro humano, dentro do nosso dia a dia, do nosso cotidiano. Como podemos respeitar o diferente? Como eu posso genuinamente respeitar o outro que possui crenças, pensamentos, e talvez uma religião diferente da minha? Como, por exemplo, respeitar a individualidade que vive em nossos filhos e que quer se expressar de forma livre no mundo a partir de quem eles mesmos são, e não a partir do que eu espero e desejo que eles sejam? Como eu posso, dentro do meu contexto profissional, me encontrar, dialogar, concordar, discordar e tratar de conflitos com o outro desta forma? Este é o nosso trabalho dentro da vida cultural / espiritual, criarmos as condições para que as capacidades individuais e espirituais de cada ser humano possam florescer e se desenvolver e com isso contribuir para uma vida social mais plena e rica.

A ideia da igualdade na vida jurídica / política trata de como criamos as condições para que haja igualdade de direitos e deveres nas relações. Apesar desta ideia atualmente já ser razoavelmente aceita e buscada em boa parte do mundo, é importante lembrarmos que vivemos, por exemplo no Brasil, numa sociedade onde as condições iniciais de desenvolvimento de um individuo ainda são muito desiguais em termos de direitos e deveres. Sabemos que muitos ainda passam por privações e sofrimento desde a tenra infância e isto pode afetar todo o desenvolvimento cognitivo, emocional e, por fim, espiritual de uma pessoa.

Então voltamos a questão do encontro humano, como eu posso me encontrar com o outro e poder enxergá- lo, lembrando desta nossa condição de igualdade como seres humanos, além da raça, idade, origem e da ideia de rico ou pobre que possuo sobre o outro? Como eu posso verdadeiramente enxergar o outro como um igual?

Esta ideia da liberdade no campo cultural / espiritual como liberdade de expressão, de pensamento e de religião, assim como a ideia da igualdade do campo político / jurídico como igualdade de direitos e deveres, são ideias atualmente aceitas e reconhecidas em boa parte do mundo atual. Por mais que ainda, muitas vezes, possamos viver e reconhecer dissociações e incoerências entre a teoria e a prática dessas ideias, onde muitas vezes de fato não há essa aceitação pela liberdade de expressão de pensamento e de ideias do outro ou nem mesmo verdadeiras condições de igualdade de direitos e deveres. Mesmo assim estas são ideias aceitas e muitas vezes consideradas lógicas para muitas pessoas e organizações ao redor de todo mundo.

Por outro lado, a ideia da fraternidade como princípio regente da economia, essa sim é uma ideia completamente contemporânea e revolucionária. Ela é inclusive contrastante com o pensamento econômico corrente atual onde a ideia da competição e do egoísmo ainda são os mais presentes e aceitos como forma básica para se lidar com a economia. Para eu ganhar alguém tem que perder e muitas vezes acreditamos nisso, mesmo que inconscientemente. Essa cultura da competição, ou do ganha-perde como alguns chamam está introjetada em nossa educação e cultura mais do que às vezes imaginamos. Podemos observar nas brincadeiras infantis e juvenis, na lógica das avaliações das escolas, universidades e organizações normalmente realizadas com base na comparação, onde por consequência teremos o melhor, o pior, o número um, o número dois e assim por diante.

Pensando assim, além do fato da trimembração do organismo social já trazer em si um grande desafio para nós como humanidade, existe ainda esse desafio de entender o que é e como se dá essa ideia da fraternidade econômica. Ao tratarmos de economia estamos falando de temas como: preço, custo, orçamento, investimento, doações, remuneração, destinação do lucro entre outros. E como então olhar e trabalhar com tudo isso a partir da fraternidade? Afinal, o que é essa fraternidade? Como olhar para tudo isso em um mundo aonde existem ainda graves problemas sócio econômicos?

Voltamos então ao tema mais próximo de cada um de nós, de nosso dia a dia, o encontro humano. Como eu posso verdadeiramente me encontrar com outro dentro do âmbito econômico? Se o encontro humano nos outros âmbitos a partir dos princípios da trimembração já pode ser desafiante, aqui torna-se mais ainda. Como me encontrar com outro buscando reconhecer e dialogar a partir de nossas mútuas e diferentes necessidades econômicas e materiais? Como fazer isso dentro do âmbito econômico e do dinheiro ainda tão inconsciente para a maioria de nós, e ainda repleto de crenças vinculadas a uma história econômica da humanidade de dor e sofrimento?

Esse é o grande desafio do novo milênio, compreender a vida em sua plenitude com compaixão e verdade, o que invariavelmente nos leva e nos levará, neste novo milênio, a busca por uma vida em sociedade regada pela fraternidade.

Como podemos então olhar a trimembração e a economia dentro do contexto macro processual de uma organização?

Como já vimos, o desafio dentro da vida cultural / espiritual é de criarmos as condições necessárias para o pleno desenvolvimento das capacidades humanas, através de um processo de identificação, desenvolvimento e aplicação destas capacidades.

A vida jurídica / política, observada a partir dos objetivos e ideais da organização, é organizada no nível dos processos através do estabelecimento e controle de acordos, a partir de políticas, regras e procedimentos que possam regular de forma saudável todo o funcionamento, o dia a dia, de um organismo social.

A vida econômica, trabalhada a partir da identidade e dos acordos definidos, pode ser ordenada a partir de um processo de identificação e satisfação de necessidades. É importante aqui o termo “identificação de necessidades” que vem antes da “satisfação de necessidades”, pois esse deve ser um processo profissional, claro, objetivo e transparente para toda a organização.

Agora, como podemos pensar estas três dimensões: capacidades (espiritual), acordos (jurídico) e necessidades (econômico), dentro dos processos ou “engrenagens” de uma organização?

O processo de identificação, desenvolvimento e aplicação de capacidades dentro de uma organização é fruto de como se lida com o desenvolvimento espiritual dentro da mesma. Falando assim “desenvolvimento espiritual” pode aparecer algo muito sutil ou subjetivo, mas o que é o espiritual dentro de nós? Primeiramente, como identificar essas capacidades espirituais dentro de cada um? Hoje o mundo já nos oferece muitas ferramentas, dentro da área do desenvolvimento humano e organizacional / RH, que normalmente seguem a seguinte macro ordem de implementação:

  1. Definição das capacidades necessárias para o atingimento dos objetivos e ideais do organismo social em pauta. (Dentro da visão da trimembração estas capacidades podem ser dividas em técnicas, sócio- comportamentais e essenciais, como já citado anteriormente);
  2. Identificação das capacidades já existentes e dos chamados “gaps” ou lacunas de capacidades a serem desenvolvidas;
  3. Criação de um processo de comunicação à organização envolvida sobre o levantamento acima realizado;
  4. A partir deste diagnóstico realizado, criação participativa de um plano para o desenvolvimento e aplicação de capacidades dentro da organização;
  5. Criação de um processo continuo de identificação, desenvolvimento, aplicação e avaliação de capacidades dentro da organização.

No âmbito jurídico, na busca pela igualdade de direitos e deveres dentro de uma organização, precisamos olhar para o processo decisório, observando e reconhecendo processos como:

  •  Como funciona o processo decisório dentro da organização?
  •  Como estão estruturados os órgãos de decisão? Qual a autonomia de deliberação de cada um destesórgãos?
  •  Qual é o método utilizado para tomada de decisão? Democrático, autocrático, sociocrático ouconsensual?
  •  As decisões tomadas são formalizadas e informadas aos órgãos e instâncias necessárias e afetadas?Como é este processo?

    No âmbito econômico existe um processo fundamental e indispensável para a construção da fraternidade dentro de um organismo social que é a transparência financeira:

Existem processos e canais para a transparência financeira na organização? Como funcionam? Em que ritmo?

  •  Qual é o grau de conhecimento das lideranças e equipes em relação as finanças da organização?
  •  As pessoas de fato entendem os números quando são apresentados?Agora, por fim, quais são as ferramentas que temos disponíveis para trabalhar com estes processos dentro de um organismo social: desenvolvimento espiritual, processo decisório (jurídico) e transparência financeira (econômico)?

    A ferramenta para trabalhar o desenvolvimento espiritual dos indivíduos em uma organização é a autoeducação. Este tema já tem estado presente nos últimos anos no mundo organizacional na forma de programas para o autodesenvolvimento, para o desenvolvimento de lideranças, equipes e de pessoas.

    E qual é a ferramenta hoje já existente para trabalharmos de forma consciente e consistente o processo decisório em uma organização? É a chamada governança. Para entendemos a governança como um macroprocesso dentro de uma organização precisamos nos deparar com perguntas como:

  •  Quais são os processos, políticas, regras, regulamentos, órgãos e instâncias que regulam a maneira como a organização é dirigida, administrada e controlada?
  •  Como são as relações entre os diversos atores envolvidos (os chamados “stakeholders”)?
  •  Como está a adesão dos principais atores aos códigos de conduta pré-acordados. Existem conflitosde interesse?
  •  Existem ou como estão os mecanismos e regras que permitem formas de acompanhamento, controlee responsabilização pelas decisões ou ações tomadas pelos líderes, gestores e diretores?

    Por fim, qual a ferramenta que temos hoje disponível para trabalharmos a transparência financeira dentro de um organismo social? É a gestão do orçamento.

    Para entendermos melhor essa dinâmica precisamos lidar com perguntas como:

  •  A organização possui um modelo de orçamento anual?
  •  Como ele é construído? Como são levantadas as necessidades? Quem participa desta construção?
  •  Como é o processo de aprovação do orçamento? Quem participa?
  •  Após aprovação existe um processo de comunicação às áreas envolvidas e afetadas?
  •  Como é o processo de acompanhamento do orçamento?Obviamente, este tema da trimembração do organismo social possui muitos outros detalhes, desdobramentos, implicações técnicas, processuais, emocionais e espirituais. Busquei aqui trazer uma síntese de como a trimembração do organismo social pode ser vista e trabalhada dentro da gestão de uma organização.

    Como reflexão final, quero trazer os arquétipos que acredito estarem por trás desta realidade da trimembração dentro de um organismo social. Trata-se de uma trindade: sabedoria, poder e verdade. Quando lidamos com a vida cultural / espiritual trabalhamos com a sabedoria, com a vida jurídica trabalhamos com o poder e com a vida econômica com a verdade. Estas forças da sabedoria, do poder e da verdade podem ser trabalhas de forma a trazer saúde ou doença para um organismo social.

    Ainda dentro do mundo arquetípico, a trimembração em si, que trata de um organismo social mundial único, trabalha a partir de um arquétipo de unidade. Imaginemos o trabalho social a partir da antroposofia como uma grande alquimia social. Neste sentido a trimembração age dentro da teia social como um remédio social, como cura. Imaginemos como se fosse uma “fórmula social”. Como uma fórmula do Amor para a vida social.

    A trimembração, em última instância, é este remédio que precisa de alquimistas sociais dispostos a trabalhar com a sabedoria, o poder e a verdade em prol do verdadeiro desenvolvimento da humanidade, ou seja, em prol do Amor.

Rodrigo Ventre
CEO do Grupo Eppo e Sócio-Diretor do Instituto Economia Viva.