Concebo algo, mais campo que trilho. Para iniciar alguns passos atrás, reflito: o que diz respeito à ideia de ser “humano”, que poderia contribuir para a definição da humanização das organizações?
Para começar por algo que nos distingue do reino animal, tomemos a reflexão e a autoconsciência. O homem pensa acerca de si próprio, como indivíduo e espécie, e do universo que o cerca, sem o que não criaríamos filosofia, arte e ciência. Podemos conversar sobre religião, psicologia e psicanálise, sociologia, antropologia, ética e moral, ecologia, história, economia, um “sem fim” de campos concebidos e renovados por nós na busca da compreensão do que é ser humano e do que é ser quem se é, cada um de nós, indivíduo, grupo, organização ou sociedade a quem integramos.
Ademais, concebemo-nos como quem cria e transforma, a si e ao mundo, no tempo. A noção mais simples de que cada humano, não importa quem seja, cria história simplesmente por que, através da ação, deixa atrás de si um mundo sempre diferente daquele que recebeu. E isto vale mesmo para todos, não apenas superstars ou personagens históricas. Ao refletir sobre quem é, da onde veio e para onde vai, o homem reconhece seu poder de criar e a responsabilidade que isto acarreta, encontrando a noção de individualidade e também a de significado: o que estou fazendo aqui? Qual o meu legado? Do que não abro mão?
Por fim, o imenso âmbito da escolha e da liberdade, ligados também à autodeterminação: autoconscientes, reflexivos, criadores e transformadores, ser quem somos tem a ver com as escolhas que fazemos, o que se dá distintamente nos diversos estágios de nossa existência. Desenvolvermo-nos no âmbito do livre-arbítrio nos é dado como potencial, mas podemos passar vidas exercitando sua prática – o que não realmente ocorre, em um sentido mais profundo, sem as já mencionadas capacidades de reflexão e autoconsciência e sem a clareza de que somos os seres auto- e eco- criadores que somos, de que empreender sempre gera consequência e de que, portanto, somos responsáveis.
Os animais vivem em seu reino natural, imersos no grupo e no tempo presente, regidos por seus instintos e, ao que se diz, por certos tipos de inteligência. Parecemos com muitos deles na necessidade de pertencer a uma sociedade ou coletividade e na de receber (e dar) cuidados e calor para desenvolvermo-nos. Porém, a nós aflige “a dor e a delicia” da identidade particular. Só nós temos um Eu e um Outro.
Somos “Eu”, indivíduo singular, que reflete sobre si e faz suas escolhas e sua história. Somos indivíduos que deixarão algo para além de sua existência. Criadores e criaturas das culturas, faz também parte do humano aprender para transcender, através dos impulsos de conservação tanto como os de ruptura.
Ou seja: temos questões existenciais ou espirituais (e aqui não falo de religião). Precisamos atribuir ou agregar significado a nós e ao que empreendemos para além do material e até do interpessoal.
Não nos basta o calor dos grupos. A gente, no fundo, quer imaginar, conceber, transformar, criticar, atuar, legar – cada qual da sua forma. Portanto, se queremos trazer a “humanidade” para as organizações, “humanizando-as”, não o faremos com comida, ninho quente, amizade e diversão, somente.
Humanizar é fazer com propósito. Com significado. É abrir caminho para que o homem possa realmente ser humano, saindo dos automatismos cotidianos, do simples repetir de tarefas ou de obedecer e cumprir mandatos, para a conexão e ampla expressão de quem o “Eu” é, através de sua realização no mundo.
As organizações, inclusive as empresariais, são palcos da produção e da realização humana. Cada indivíduo pode e deve buscar a sua forma de vincular-se a sua organização como meio para a criação de sua contribuição única e para, juntos (pessoa, grupo e empresa), criarem valor no mundo, transformando as formas de vida para o bem comum. Com propósito(mais que razão) social.
Como indiquei antes, penso que estamos falando de um campo, não de um trilho. Campo que é verbo, que depende de agir, experimentar, escolher e arriscar. Portanto, da próxima vez que conversarmos sobre humanizar o ambiente de trabalho ou a empresa, sugiro que perguntemo-nos: como ir além do ninho quente para falar de voos de significado e propósito?
Foto: (c) Paula Saboia. Paris, out/2010.