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Há alguns dias, recebemos uma provocação acerca do que a Adigo Lumo quer dizer com a ideia de humanizar as organizações empresariais.  “Excelente pergunta”, pensei, pois o tema pode parecer óbvio, mas não é. Há um mundo atrás das ideias que tomamos como claras, mas que, como costumamos dizer, estão grávidas dos mais diversos significados.Num primeiro momento, poderíamos trabalhar com uma definição que associa a humanização ao calor: para humanizar, combatamos a frieza do mundo dos negócios trazendo a dimensão do sentir, o campo das emoções, para as relações nas organizações. Não deixa de ser uma imagem atraente e até necessária. Mas logo parecerá insuficiente, se trabalharmos a ideia do que nos faz, realmente, humanos.

Concebo algo, mais campo que trilho. Para iniciar alguns passos atrás, reflito: o que diz respeito à ideia de ser “humano”, que poderia contribuir para a definição da humanização das organizações?

Para começar por algo que nos distingue do reino animal, tomemos a reflexão e a autoconsciência. O homem pensa acerca de si próprio, como indivíduo e espécie, e do universo que o cerca, sem o que não criaríamos filosofia, arte e ciência. Podemos conversar sobre religião, psicologia e psicanálise, sociologia, antropologia, ética e moral, ecologia, história, economia, um “sem fim” de campos concebidos e renovados por nós na busca da compreensão do que é ser humano e do que é ser quem se é, cada um de nós, indivíduo, grupo, organização ou sociedade a quem integramos.

Ademais, concebemo-nos como quem cria e transforma, a si e ao mundo, no tempo. A noção mais simples de que cada humano, não importa quem seja, cria história simplesmente por que, através da ação, deixa atrás de si um mundo sempre diferente daquele que recebeu. E isto vale mesmo para todos, não apenas superstars ou personagens históricas. Ao refletir sobre quem é, da onde veio e para onde vai, o homem reconhece seu poder de criar e a responsabilidade que isto acarreta, encontrando a noção de individualidade e também a de significado: o que estou fazendo aqui? Qual o meu legado? Do que não abro mão?

Por fim, o imenso âmbito da escolha e da liberdade, ligados também à autodeterminação: autoconscientes, reflexivos, criadores e transformadores, ser quem somos tem a ver com as escolhas que fazemos, o que se dá distintamente nos diversos estágios de nossa existência. Desenvolvermo-nos no âmbito do livre-arbítrio nos é dado como potencial, mas podemos passar vidas exercitando sua prática – o que não realmente ocorre, em um sentido mais profundo, sem as já mencionadas capacidades de reflexão e autoconsciência e sem a clareza de que somos os seres auto- e eco- criadores que somos, de que empreender sempre gera consequência e de que, portanto, somos responsáveis.

Os animais vivem em seu reino natural, imersos no grupo e no tempo presente, regidos por seus instintos e, ao que se diz, por certos tipos de inteligência. Parecemos com muitos deles na necessidade de pertencer a uma sociedade ou coletividade e na de receber (e dar) cuidados e calor para desenvolvermo-nos. Porém, a nós aflige “a dor e a delicia” da identidade particular. Só nós temos um Eu e um Outro.

Somos “Eu”, indivíduo singular, que reflete sobre si e faz suas escolhas e sua história. Somos indivíduos que deixarão algo para além de sua existência. Criadores e criaturas das culturas, faz também parte do humano aprender para transcender, através dos impulsos de conservação tanto como os de ruptura.

Ou seja: temos questões existenciais ou espirituais (e aqui não falo de religião). Precisamos atribuir ou agregar significado a nós e ao que empreendemos para além do material e até do interpessoal.

Não nos basta o calor dos grupos. A gente, no fundo, quer imaginar, conceber, transformar, criticar, atuar, legar – cada qual da sua forma. Portanto, se queremos trazer a “humanidade” para as organizações, “humanizando-as”, não o faremos com comida, ninho quente, amizade e diversão, somente.

Humanizar é fazer com propósito. Com significado. É abrir caminho para que o homem possa realmente ser humano, saindo dos automatismos cotidianos, do simples repetir de tarefas ou de obedecer e cumprir mandatos, para a conexão e ampla expressão de quem o “Eu” é, através de sua realização no mundo.

As organizações, inclusive as empresariais, são palcos da produção e da realização humana.  Cada indivíduo pode e deve buscar a sua forma de vincular-se a sua organização como meio para a criação de sua contribuição única e para, juntos (pessoa, grupo e empresa), criarem valor no mundo, transformando as formas de vida para o bem comum. Com propósito(mais que razão) social.

Como indiquei antes, penso que estamos falando de um campo, não de um trilho. Campo que é verbo, que depende de agir, experimentar, escolher e arriscar. Portanto, da próxima vez que conversarmos sobre humanizar o ambiente de trabalho ou a empresa, sugiro que perguntemo-nos: como ir além do ninho quente para falar de voos de significado e propósito?

 

Foto: (c) Paula Saboia. Paris, out/2010.